TEORIA E PRÁTICA DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA (ACP): UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Miriam Charelli

Mestre. Carla Patrícia Rambo Matheus

RESUMO

A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), desenvolvida por Carl Rogers, fundamenta-se nos princípios de congruência, aceitação incondicional e empatia como meios essenciais para o crescimento pessoal. O presente estudo tem como objetivo analisar a experiência e a aplicação prática da ACP em um relato de experiência clínica, explorando a relação terapeuta-cliente no contexto de um homem que buscou psicoterapia após uma separação conturbada. A metodologia utilizada foi qualitativa, baseada na revisão bibliográfica e na análise de um caso clínico acompanhado ao longo de dois anos, com sessões online e presenciais. Os resultados indicam que, ao longo do processo terapêutico, o cliente demonstrou evolução emocional significativa, aprimorando seu autocontrole e desenvolvendo maior autoconhecimento. Entretanto, desafios como padrões internalizados de comportamento e dificuldades no relacionamento parental exigiram intervenções voltadas à ressignificação dessas vivências. Conclui-se que a ACP se mostrou eficaz na facilitação do crescimento pessoal do cliente, reforçando a importância da relação terapêutica como meio para a transformação e reorganização da autoimagem.

Palavras-chave: Abordagem Centrada na Pessoa, Psicoterapia, Relação Terapeuta-Cliente, Crescimento Pessoal.

ABSTRACT

The Person-Centered Approach (PCA), developed by Carl Rogers, is based on the principles of congruence, unconditional acceptance, and empathy as essential means for personal growth. The present study aims to analyze the experience and practical application of PCA in a clinical experience report, exploring the therapist-client relationship in the context of a man who sought psychotherapy after a troubled separation. The methodology used was qualitative, based on the literature review and the analysis of a clinical case followed over two years, with online and face-to-face sessions. The results indicate that, throughout the therapeutic process, the client demonstrated significant emotional evolution, improving their self-control and developing greater self-knowledge. However, challenges such as internalized patterns of behavior and difficulties in the parental relationship required interventions aimed at reframing these experiences. It is concluded that PCA proved to be effective in facilitating the client’s personal growth, reinforcing the importance of the therapeutic relationship as a means for the transformation and reorganization of self-image.

Keywords: Person-Centered Approach, Psychotherapy, Therapist-Client Relationship, Personal Growth.

1 INTRODUÇÃO

A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), desenvolvida por Carl Rogers, destaca a importância da relação entre terapeuta e cliente como um elemento essencial no processo terapêutico. Fundamentada nos princípios de empatia, congruência e aceitação incondicional, essa abordagem visa proporcionar um ambiente seguro e acolhedor para que o cliente possa se desenvolver e alcançar um crescimento pessoal genuíno. Diferente de métodos diretivos, a ACP confia na tendência atualizante do indivíduo, acreditando que este possui os recursos necessários para se reorganizar e encontrar soluções para seus conflitos internos.

Na prática clínica, a ACP apresenta desafios e nuances que exigem do terapeuta um posicionamento ético e reflexivo, garantindo que a escuta ativa e a aceitação do cliente ocorram de maneira autêntica. A postura não diretiva do profissional possibilita que o cliente compreenda seus sentimentos, ressignifique suas experiências e tome decisões alinhadas ao seu próprio crescimento. Contudo, quando o cliente apresenta comportamentos conturbados ou convicções internalizadas que geram sofrimento, a aplicação dos princípios da ACP pode demandar maior sensibilidade e adaptação por parte do terapeuta.

O presente relato de experiência aborda a aplicação da ACP em um caso clínico que envolve questões complexas como relacionamento abusivo, conflitos parentais e a busca por autoconhecimento. O cliente, um homem que procurou psicoterapia após uma separação conturbada, apresenta dificuldades emocionais e comportamentais que impactam sua relação com a ex-esposa e os filhos. Ao longo do processo terapêutico, observou-se a influência de padrões familiares negativos e convicções internalizadas que dificultavam sua adaptação a uma nova dinâmica de vida.

O objetivo geral deste estudo é compreender como a relação terapeuta-cliente pode favorecer o crescimento pessoal durante o processo psicoterapêutico. Especificamente, busca-se apresentar a dinâmica da relação terapêutica dentro da perspectiva da ACP, discutir as atitudes facilitadoras e o papel da tendência atualizante no desenvolvimento do cliente e refletir sobre os desafios e superações do terapeuta ao longo desse atendimento. A experiência relatada ilustra como a ACP pode contribuir para a transformação pessoal e para a construção de um caminho mais saudável de convivência, mesmo em contextos de grande conflito emocional.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), desenvolvida por Carl Rogers, baseia-se na premissa de que os indivíduos possuem uma tendência inata ao crescimento e à autorrealização, desde que inseridos em um ambiente facilitador. Esse modelo terapêutico se diferencia de abordagens diretivas ao valorizar a experiência subjetiva do cliente e a qualidade da relação terapêutica, considerando a congruência, a aceitação incondicional e a empatia como condições essenciais para a mudança (ROGERS; KINGET, 1977). Nesse sentido, a ACP não busca oferecer interpretações ou soluções prontas, mas sim criar um espaço seguro para que o cliente possa explorar suas emoções e reorganizar sua autoimagem de forma genuína. (HYCNER, 1995).

Para que a psicoterapia seja eficaz dentro da ACP, é fundamental que o terapeuta demonstre congruência, ou seja, autenticidade na relação com o cliente. Rogers (1980) enfatiza que a congruência se refere à capacidade do terapeuta de ser verdadeiro em suas interações, sem máscaras ou posturas artificiais. Essa transparência permite ao cliente confiar na relação terapêutica e se sentir seguro para expressar suas angústias. Conforme apontado por Tambara e Freire (1999), quando o terapeuta assume uma postura genuína, o cliente sente-se incentivado a fazer o mesmo, o que favorece seu crescimento pessoal. Além da congruência, a aceitação incondicional é um dos pilares da ACP. O terapeuta deve acolher o cliente independentemente de seus pensamentos, sentimentos ou comportamentos, criando um ambiente isento de julgamentos (LOPES; CHAVES, 2012). Essa postura contribui para que o cliente se perceba digno de consideração e desenvolva uma autoimagem mais positiva. Segundo Rogers (2017), a aceitação incondicional aumenta a probabilidade de que o cliente também passe a se aceitar, promovendo mudanças internas que refletem na sua forma de interagir com o mundo.

A empatia, terceiro elemento fundamental da ACP, refere-se à habilidade do terapeuta de compreender profundamente a experiência do cliente e comunicá-la de forma clara e sensível (ROGERS, 1980). Diferente de uma mera simpatia ou identificação, a empatia exige do terapeuta um esforço contínuo para captar os significados subjacentes às falas do cliente, sem projetar suas próprias crenças ou experiências na interpretação do que é dito (TAMBARA; FREIRE, 1999). Conforme observado por Pinto (2023), essa capacidade de se colocar no lugar do outro sem perder sua própria perspectiva favorece o desenvolvimento da autonomia e da autorregulação do cliente.

A tendência atualizante é outro conceito central da ACP e refere-se à capacidade natural dos indivíduos de buscar crescimento e desenvolvimento pessoal, desde que inseridos em um ambiente favorável (PINTO, 2023). Rogers (1985) ilustra tal questão ao descrever como as batatas inglesas, mesmo armazenadas em locais inadequados, tentam crescer em direção à luz. Essa metáfora exemplifica como, mesmo em contextos adversos, o ser humano possui um impulso inerente para a autorrealização. Assim, o terapeuta da ACP não impõe direções, mas oferece um espaço que permite ao cliente acessar seu potencial latente.

A ACP também se destaca pelo seu impacto nas relações interpessoais, especialmente em contextos conjugais e familiares. Segundo Rogers (1985), a comunicação autêntica entre parceiros é essencial para o crescimento mútuo e a manutenção de relacionamentos saudáveis. Quando um dos parceiros não respeita o crescimento individual do outro, a relação torna-se um fator de limitação, ao invés de um ambiente de desenvolvimento. Esse conceito é relevante ao analisar o impacto da separação conjugal na parentalidade, uma vez que filhos de pais divorciados precisam de um ambiente afetivo estável para seu desenvolvimento emocional (ROGERS, 1985).

Outro aspecto relevante da ACP é a sua perspectiva sobre a construção da autoimagem. Segundo Baptista (2008), a autoimagem é moldada desde a infância por meio das interações com figuras significativas. Muitas vezes, valores e comportamentos são internalizados sem questionamento, tornando-se incongruentes com a verdadeira experiência organísmica do indivíduo. No caso de clientes que apresentam dificuldades em romper padrões internalizados, a terapia centrada na pessoa oferece um espaço para que possam ressignificar essas influências e desenvolver uma identidade mais autêntica (FEIST; FEIST; ROBERTS, 2015).

A ACP também rompe com o modelo tradicional de psicoterapia, no qual o terapeuta assume um papel diretivo. Como apontado por Tambara e Freire (1999), na ACP o cliente não é tratado como um “paciente”, mas sim como um indivíduo ativo em seu próprio processo de mudança. Essa visão vai ao encontro do que Rogers (1959) propôs ao afirmar que os conflitos emocionais não podem ser tratados como doenças no sentido biomédico, uma vez que envolvem questões existenciais e não condições objetivamente diagnosticáveis.

A ACP reforça a importância do papel do terapeuta como facilitador e não como autoridade sobre a vida do cliente. Segundo Hycner (1995), a relação terapêutica deve ser baseada na horizontalidade, em que terapeuta e cliente compartilham um espaço de compreensão mútua. Quando essa relação é estabelecida de forma genuína, ocorre uma transformação profunda, permitindo que o cliente encontre novas formas de lidar com suas dificuldades e se aproxime de uma vivência mais congruente e satisfatória.

Dessa forma, a Abordagem Centrada na Pessoa configura-se como um modelo terapêutico que valoriza a autonomia e a experiência subjetiva do cliente, proporcionando um ambiente no qual ele pode explorar suas questões internas com liberdade e sem medo de julgamentos. Sua aplicabilidade estende-se a diversos contextos, incluindo relacionamentos conjugais, educação e atendimento a crianças, demonstrando que a base para qualquer processo de mudança é a criação de um espaço de aceitação e crescimento mútuo (PINTO, 2023).

Outra questão a se destacar, refere-se as respostas reflexo, também conhecidas como respostas empáticas, constituem um elemento fundamental no processo terapêutico da ACP, sendo uma das principais ferramentas do terapeuta para demonstrar compreensão e presença genuína na escuta do cliente. Ao refletir sentimentos, significados e experiências expressos pelo cliente com sensibilidade e precisão, o terapeuta valida sua vivência, promovendo um espaço de segurança emocional. Segundo Gobbi et al. (2021), essas respostas funcionam como um espelho afetivo que ajuda o cliente a organizar internamente seus conteúdos emocionais, favorecendo o autoconhecimento e a autorregulação. Trata-se de uma comunicação que não impõe julgamentos nem interpretações, mas que oferece devoluções cuidadosamente elaboradas para que o próprio cliente possa avançar em sua elaboração emocional.

Além de facilitar a expressão emocional, as respostas reflexo têm o poder de aprofundar a relação terapêutica, estimulando no cliente a percepção de que está sendo verdadeiramente compreendido em sua essência. Isso contribui para o fortalecimento do vínculo e para a emergência de insights transformadores. Conforme ressaltam Tambara e Freire (1999), ao devolver com autenticidade o que o cliente expressa, o terapeuta reafirma sua postura de aceitação incondicional e empatia, pilares que sustentam a mudança terapêutica na ACP. Essas respostas não devem ser mecanizadas, mas sim sintonizadas com a vivência do cliente em cada momento da sessão, contribuindo diretamente para a atualização da experiência subjetiva e o rompimento com padrões desadaptativos internalizados.

3 METODOLOGIA

Este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório, baseada na revisão bibliográfica e no relato de experiência da prática clínica no acompanhamento psicoterapêutico de um cliente ao longo de aproximadamente dois anos. O objetivo é analisar a relação terapeuta-cliente sob a perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), identificando a influência das atitudes facilitadoras e da tendência atualizante no processo de desenvolvimento pessoal do cliente.

A pesquisa exploratória, conforme Gil (2008), busca oferecer uma visão ampla sobre determinado fenômeno, permitindo maior familiaridade com o tema e possibilitando reflexões que contribuam para a ampliação do conhecimento. Dessa forma, este estudo fundamenta-se em um relato de experiência, que, segundo Mussi et al. (2021), consiste em uma produção acadêmica embasada em vivências profissionais e que deve conter tanto a descrição da intervenção quanto a análise crítica sustentada por literatura científica.

De acordo com Godoy (1995), o método qualitativo visa compreender os fenômenos a partir da perspectiva dos sujeitos envolvidos, valorizando a interpretação dos significados e das interações. O acompanhamento do cliente ocorreu em um total de 30 sessões, sendo 28 realizadas no formato online e 2 de forma presencial, uma delas contando com a participação da ex-esposa do cliente. O processo terapêutico foi conduzido segundo os princípios da ACP, enfatizando a escuta ativa, a aceitação incondicional e a empatia como ferramentas centrais para a construção de um espaço seguro e facilitador do crescimento pessoal.

A análise dos dados foi realizada por meio da sistematização dos relatos das sessões, destacando as principais temáticas emergentes, as transformações observadas ao longo do processo e os desafios enfrentados pelo terapeuta. Essa abordagem permitiu uma compreensão aprofundada do impacto da psicoterapia na vida do cliente, bem como a reflexão sobre os desafios da prática clínica na condução de casos complexos.

4 RELATO DE EXPERIÊNCIA

4.1 INÍCIO DO PROCESSO TERAPÊUTICO

O cliente, um homem de 28 anos, procurou a psicoterapia em 30 de novembro de 2023, por iniciativa própria, após sua separação. Ele se identifica como uma pessoa “machista”, tem dois filhos que estão na primeira infância.  Durante o relacionamento, teve comportamentos agressivos, traições e tentou induzir a ex-esposa a um aborto, algo que hoje o atormenta, pois ama os filhos e busca garantir o bem-estar deles. Apesar de desejar manter contato frequente com as crianças, a ex-esposa impõe dificuldades para que ele as leve consigo, insistindo que as visitas ocorram em sua casa. Nessas circunstâncias, ela tenta retomar a relação, o que resultou na gestação do segundo filho.

Ele relata ter crescido em um ambiente familiar marcado por agressões e conflitos constantes entre seus pais, afirmando que nunca repetiria esse padrão. Entretanto, reconhece que tem dificuldades em controlar suas emoções, muitas vezes explodindo em discussões com a ex-esposa e dirigindo-lhe ofensas. Relatou que optou pela separação justamente para evitar continuar agredindo a ex-companheira.

 Intervenção: se refletiu que ele estava reproduzindo padrões familiares sem perceber, o que impactava diretamente suas relações atuais.

Em uma sessão, emocionou-se ao expressar que se sente julgado por todos, incluindo a terapeuta. Intervenção: externalização da compreensão da sua perspectiva e que a psicoterapia busca explorar sua vivência a partir do seu olhar e experiência, sem julgamentos.

As intervenções baseadas na Abordagem Centrada na Pessoa buscaram respeitar a experiência subjetiva do cliente e favorecer um espaço de escuta autêntica, empática e não julgadora. A externalização de seus conflitos internos e a identificação de padrões herdados do ambiente familiar permitiram uma reorganização gradual da sua autoimagem e de suas relações interpessoais. Como destacam Gobbi et al. (2021), a prática da abordagem centrada na pessoa, exige do terapeuta a postura de presença plena e congruente, favorecendo um ambiente em que o cliente possa se perceber com maior clareza. Essa atitude terapêutica não impõe interpretações, mas convida o cliente a entrar em contato com sua própria experiência, permitindo transformações reais e duradouras.

4.2 DESAFIOS NA RELAÇÃO COM A EX-ESPOSA E OS FILHOS

Por lei, ele tem direito a visitas quinzenais, mas a ex-esposa dificulta a entrega das crianças, o que o leva a perder a paciência e excluí-la de suas redes de contato. Durante um final de semana na praia, após um período de harmonia entre ambos, acabaram tendo relações sexuais. Isso o fez sentir-se frustrado, pois acredita que ela pode interpretar o ato como uma possível reconciliação.

Intervenção: alertei sobre a possibilidade de uma nova gestação e enfatizei a importância de definir limites claros para evitar recaídas.

A ex-esposa frequentemente critica a forma como ele educa o filho mais velho e o utiliza como ferramenta de manipulação emocional.

Intervenção: foi orientado a buscar apoio jurídico, pois tem direito legal ao convívio com as crianças sem precisar negociar ou implorar para a ex-companheira. Além disso, foi discutida a necessidade de autocontrole, principalmente nas interações digitais, pois as mensagens agressivas enviadas por ele podem ser usadas contra si em um eventual litígio.

Em um episódio, viajou com o filho mais novo sem portar sua documentação, o que levou a ex-esposa a ameaçar denunciá-lo por sequestro. Sentindo-se exausto da situação, cogitou renunciar ao contato com as crianças e limitar sua contribuição apenas à pensão alimentícia. Intervenção: ressaltei que essa decisão radical poderia ser prejudicial tanto para ele quanto para os filhos, sugerindo a possibilidade de uma sessão conjunta para mediar o diálogo.

Após viajar para espairecer, percebeu que só se sentiu verdadeiramente bem ao reencontrar os filhos, mesmo que por pouco tempo. Intervenção: foi organizada uma sessão presencial com a presença da ex-esposa. Nessa ocasião, ele demonstrou comportamento hostil e inflexível. A ex-esposa, por sua vez, entregou uma carta relatando suas vivências durante o relacionamento. Optei por não apresentar a carta no momento, considerando o impacto emocional que poderia causar, e discuti seu conteúdo posteriormente, em outro encontro terapêutico.

As situações relatadas evidenciam a complexidade das relações interpessoais marcadas por padrões disfuncionais e a importância de trabalhar limites saudáveis no processo terapêutico. Na Abordagem Centrada na Pessoa, promover um ambiente seguro e acolhedor favorece a autorregulação emocional e o desenvolvimento de atitudes mais congruentes, sem julgamento e com empatia. Conforme afirmam Gobbi et al. (2021), é por meio da relação terapêutica genuína que o cliente se sente aceito o suficiente para revisar suas experiências e reorganizar sua forma de se relacionar consigo e com os outros.

4.3 CONFLITOS E DESENVOLVIMENTO PESSOAL

O cliente frequentemente relata que a ex-esposa provoca situações para testar seu comportamento e levá-lo a reações explosivas. Apesar disso, tem demonstrado maior capacidade de controle emocional.

Intervenção: elucidei que a terapia tem como objetivo ajudá-lo a fortalecer-se emocionalmente e a não permitir que tais provocações desestabilizem sua evolução. Ele mencionou que se sente mais confiante e que tem refletido sobre uma frase que o marcou: “Não fique voltando para o que te machucou, não abra portas fechadas para não atrapalhar o seu processo de evolução e amadurecimento.”

Em outra sessão, relatou que conseguiu restabelecer contato com seu irmão mais velho, com quem não falava há muito tempo. Apesar de se entenderem, decidiu manter certa distância devido às diferenças entre eles principalmente por sempre ter reproduzido seu comportamento machista e grosseiro. Além disso, passou um final de semana com os filhos, sentindo-se realizado. No entanto, quase cedeu à tentação de retomar a intimidade com a ex-esposa, mas foi ela quem recusou. Posteriormente, sentiu-se provocado por ela com mensagens e vídeos. Intervenção: reiterei a necessidade de manter limites firmes e de não se deixar levar por essas provocações.

A ex-esposa, em outro momento, revelou que tem receio de deixar os filhos com ele. Intervenção: validei seus sentimentos, mas enfatizei que ele tem direitos como pai e que meu papel na terapia é ajudá-lo a evoluir emocionalmente.

O desenvolvimento pessoal promovido ao longo do processo terapêutico está diretamente ligado à capacidade do cliente de reconhecer padrões comportamentais e optar por formas mais autênticas e saudáveis de agir. Na Abordagem Centrada na Pessoa, a mudança ocorre quando o indivíduo se sente plenamente aceito e compreendido, o que o encoraja a reorganizar sua autoimagem e seus vínculos afetivos. Como ressaltam Rogers e Kinget (1977), é a experiência de um relacionamento empático, genuíno e não julgador que permite ao cliente acessar seu potencial de crescimento e maturação emocional.

4.4 IMPACTOS DAS MEDIDAS LEGAIS E REFLEXÕES FINAIS

Após buscar orientação no Conselho Tutelar sobre a dificuldade em ver os filhos, a ex-esposa entrou com uma medida protetiva contra ele, alegando agressões do passado. Inicialmente, ele ficou extremamente revoltado, mas, com o tempo, conseguiu entender a motivação dela. Intervenção: orientei a procurar um advogado e a evitar qualquer contato ofensivo com a ex-esposa, respeitando a decisão judicial.

Decidiu viajar para sua cidade natal no Nordeste para aliviar a tensão. Aos poucos, conseguiu acalmar sua raiva e até mesmo perdoá-la. Em uma sessão, chorou ao refletir sobre como essa situação o afetou profundamente e como precisava de mudanças em sua vida. Intervenção: foi explorada suas dificuldades em transformar padrões enraizados, como o machismo e a impulsividade. Ele reconheceu que, embora tenha sido moldado por esses comportamentos, deseja se modificar.

Recentemente, ele mencionou que encontrou um novo propósito para sua vida e tem se dedicado à leitura diária, algo que considera essencial para seu crescimento pessoal. Relata que não deseja mais relações superficiais e sente-se satisfeito com sua evolução. Intervenção: validei seu progresso e elucidei a importância da continuidade do processo terapêutico.

No que se refere à ex-esposa, afirma que mantém uma relação cordial, mas que não tem mais sentimentos por ela. No entanto, ela ainda demonstra esperança em reatar. Ele tenta deixar claro que deseja apenas uma relação saudável como pais. Em uma tentativa de simbolizar essa nova fase, mandou fazer uma aliança, mas não quer entregá-la à ex-esposa. Intervenção: elucidei que o anel pode representar um compromisso consigo mesmo e sua nova jornada, ao invés de uma possível retomada do casal.

O reconhecimento das próprias limitações e a busca por transformação indicam um processo terapêutico alinhado aos princípios da Abordagem Centrada na Pessoa, que valoriza a tendência atualizante do indivíduo — sua capacidade inata de crescimento e autocompreensão quando em um ambiente propício. Conforme apontam Tambara e Freire (1999), é no espaço relacional autêntico e acolhedor que o cliente encontra condições para revisar crenças limitantes, ressignificar experiências dolorosas e assumir um compromisso mais profundo consigo mesmo.

4.5 CONCLUSÃO DO PROCESSO TERAPÊUTICO

O cliente demonstrou avanços significativos ao longo do acompanhamento, conseguindo identificar padrões de comportamento prejudiciais e desenvolver mecanismos para lidar melhor com suas emoções e relações interpessoais. Seu processo reflete a importância da Abordagem Centrada na Pessoa, pois permitiu que, a partir da relação terapêutica, ele alcançasse maior autoconhecimento, autocontrole e bem-estar emocional.

Ainda há desafios a serem enfrentados, especialmente no que se refere à convivência com a ex-esposa e à construção de um modelo de paternidade mais estável. No entanto, sua evolução evidencia o impacto positivo da terapia, reforçando a importância da tendência atualizante e das atitudes facilitadoras para a transformação pessoal.

A trajetória do cliente ilustra como a experiência terapêutica centrada na pessoa pode favorecer mudanças profundas e sustentáveis. A escuta empática, a aceitação incondicional e a autenticidade do terapeuta criam um campo relacional no qual o cliente se sente suficientemente seguro para acessar conteúdos internos e reorganizar sua narrativa de vida. Como destaca Hycner (1995), a transformação ocorre de “pessoa a pessoa”, em um encontro genuíno que possibilita ao sujeito reencontrar-se com sua humanidade e com seu potencial de ser.

5 DISCUSSÃO

O presente relato de experiência, fundamentado na Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), exemplifica como o processo terapêutico pode facilitar a mudança e o crescimento pessoal quando o cliente é inserido em um ambiente terapêutico que promove a congruência, a aceitação incondicional e a empatia, conforme proposto por Carl Rogers (1980; 2017). O caso em questão ilustra um cliente que buscou psicoterapia após o término de um relacionamento abusivo e conflituoso, evidenciando a influência dos padrões familiares na sua forma de se relacionar e na dificuldade de estabelecer limites saudáveis.

A tendência atualizante, conceito central na ACP, refere-se à capacidade inerente do ser humano de buscar crescimento, desenvolvimento e autorregulação (Rogers & Kinget, 1977). De acordo com Rogers (2017), quando um ambiente psicológico favorável é criado, essa tendência manifesta-se plenamente, promovendo mudanças significativas na forma como o indivíduo se percebe e interage com o mundo.

O cliente, desde o início da psicoterapia, demonstrou um forte desejo de mudança, reconhecendo a necessidade de transformar seus padrões de comportamento. Seu histórico de violência e agressividade foi sendo ressignificado ao longo do processo, e ele passou a desenvolver maior autoconsciência e autorregulação emocional. Tal mudança pode ser compreendida a partir da analogia feita por Rogers sobre as batatas inglesas que brotam em direção às frestas de luz, ilustrando que, mesmo em ambientes adversos, o ser humano busca crescer e se desenvolver (Pinto, 2023).

Essa transformação também pode ser relacionada ao que Tambara e Freire (1999) destacam sobre o “novo eu” que emerge quando o indivíduo passa a se perceber de maneira mais congruente. O cliente, ao longo das sessões, começou a internalizar uma nova forma de enxergar suas experiências, reduzindo suas respostas impulsivas e agressivas, desenvolvendo maior controle emocional e aceitando sua responsabilidade nas interações conflituosas com a ex-esposa.

A relação terapêutica desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do cliente. Segundo Rogers (1980), a congruência, a aceitação incondicional e a empatia são as bases para a criação de um ambiente seguro, onde o cliente pode se expressar sem medo de julgamentos e explorar suas experiências de maneira autêntica.

No presente caso, a terapeuta adotou uma postura não diretiva, garantindo que o cliente se sentisse compreendido e acolhido, mesmo quando compartilhava aspectos negativos de sua história, como suas atitudes agressivas e sua dificuldade em lidar com os conflitos com a ex-esposa. Essa abordagem é coerente com o que Tambara e Freire (1999) apontam sobre o papel do terapeuta da ACP, que não julga, não dá conselhos diretos, mas auxilia o cliente a tomar as decisões que considera mais adequadas.

A empatia demonstrada pela terapeuta permitiu que o cliente começasse a reformular sua autoimagem e a compreender que não precisava reproduzir padrões familiares conturbados. Como apontado por Pinto (2023), a autoimagem é construída ao longo da vida e pode ser modificada quando o indivíduo percebe que suas crenças e comportamentos foram introjetados do meio externo e não refletem sua verdadeira essência. Isso é evidenciado no relato do cliente, que reconheceu ter aprendido o machismo com os homens de sua família, mas que, ao longo da psicoterapia, passou a questionar e modificar esse comportamento.

Além disso, a relação terapêutica também possibilitou que o cliente percebesse que sua ex-esposa, ao forçar uma reconciliação, estava impondo uma dinâmica que o tornava incongruente consigo mesmo. Conforme exposto por Rogers (2017), viver uma relação que não condiz com a verdade interna do indivíduo, gera um estado de incongruência que pode levar a conflitos internos e emocionais.

Rogers (1985) enfatiza que, quando há uma comunicação autêntica entre um casal, há maior possibilidade de crescimento mútuo e desenvolvimento individual. No entanto, no caso analisado, a relação entre o cliente e sua ex-esposa era marcada por comunicação unilateral e por padrões destrutivos que dificultavam a construção de um relacionamento parental saudável.

O cliente frequentemente se via preso a dinâmicas de agressividade e submissão, alternando entre tentar impor sua autoridade e ceder às exigências da ex-esposa. Isso está alinhado com a discussão de Pinto (2023) sobre como tanto a agressividade quanto a submissão podem ultrapassar o grau da normalidade e gerar relações conturbadas. Durante o processo terapêutico, foi trabalhado com o cliente a importância de encontrar um equilíbrio e agir com assertividade, sem ceder à provocação ou recorrer a explosões emocionais.

A resistência da ex-esposa em permitir que o cliente se afastasse emocionalmente também reflete a dificuldade que alguns casais enfrentam ao lidar com o fim de um relacionamento. Rogers (1985) destaca que um relacionamento se torna mais enriquecedor quando os dois parceiros incentivam o crescimento mútuo. Entretanto, quando apenas um dos parceiros evolui, a distância entre ambos tende a aumentar, tornando a convivência mais desafiadora. No caso em questão, a ex-esposa parecia não aceitar a separação, o que gerava constantes embates e impedia uma relação parental mais harmoniosa.

O impacto da separação nos filhos também foi um aspecto central no relato. Rogers (1985) alerta que crianças cujos pais estão em processo de divórcio precisam de suporte emocional e estabilidade. No caso analisado, o cliente se preocupava com a forma como a ex-esposa poderia influenciar a visão dos filhos sobre ele. Sua angústia era agravada pelo medo de que as crianças fossem afastadas de sua convivência, o que o levava a ter reações impulsivas e, por vezes, agressivas.

Durante as sessões, foi reforçada a importância de manter a calma e de buscar meios legais para garantir seu direito à convivência com os filhos. Como mencionado por Tambara e Freire (1999), quando um indivíduo começa a se enxergar de forma mais autêntica e desenvolve maior segurança interna, torna-se menos suscetível a provocações externas. O cliente passou a compreender que, independentemente das atitudes da ex-esposa, ele poderia agir com equilíbrio e priorizar o bem-estar das crianças.

O relato analisado ilustra, na prática, os princípios fundamentais da Abordagem Centrada na Pessoa e a importância da relação terapêutica no processo de transformação do cliente. Através da congruência, da aceitação incondicional e da empatia, foi possível ajudá-lo a reorganizar sua percepção sobre si mesmo, sobre sua relação com a ex-esposa e sobre seu papel como pai.

Ao longo do processo, o cliente passou de um estado de desorganização emocional, marcado por impulsividade e agressividade, para um estágio de maior autorregulação, no qual conseguiu estabelecer limites mais claros e desenvolver uma comunicação mais assertiva. Sua jornada terapêutica reflete a tendência atualizante descrita por Rogers (2017), evidenciando que, quando o indivíduo encontra um ambiente favorável, é capaz de modificar padrões internalizados e buscar seu crescimento pessoal.

Dessa forma, o caso reforça o papel essencial da ACP na promoção do autoconhecimento e da transformação genuína, demonstrando que, ao oferecer um ambiente terapêutico acolhedor e livre de julgamentos, o terapeuta possibilita que o cliente se torne mais congruente consigo mesmo e assuma um papel ativo na construção de sua própria experiência de vida.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aplicação da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) no caso clínico relatado evidenciou a importância da relação terapêutica na facilitação do crescimento pessoal e na ressignificação de padrões internalizados. O processo psicoterapêutico permitiu que o cliente desenvolvesse maior autoconsciência e controle emocional, tornando-se mais apto a lidar com os desafios em suas relações interpessoais, especialmente no contexto da parentalidade e do relacionamento com a ex-esposa. A congruência, a aceitação incondicional e a empatia, enquanto pilares da ACP, proporcionaram um ambiente seguro para que ele explorasse suas dificuldades e avançasse na construção de um novo modelo de interação baseado no respeito e na assertividade.

Os desafios enfrentados ao longo do atendimento demonstram que a mudança não ocorre de forma linear, exigindo do terapeuta uma postura flexível e acolhedora para lidar com momentos de resistência e retrocesso do cliente. O caso analisado reforça a tendência atualizante proposta por Rogers, indicando que, quando inserido em um ambiente propício, o indivíduo pode acessar recursos internos para promover sua transformação pessoal. No entanto, também ficou evidente que a manutenção dessas mudanças exige um esforço contínuo por parte do cliente, especialmente no que diz respeito à aplicação do aprendizado terapêutico em sua vida cotidiana.

Dessa forma, a ACP mostrou-se uma abordagem eficaz para auxiliar o cliente na construção de uma identidade mais congruente consigo mesmo, favorecendo sua autonomia e capacidade de enfrentar desafios emocionais com maior equilíbrio. O estudo reforça a relevância da relação terapêutica como instrumento de mudança e destaca a necessidade de um olhar atento aos aspectos subjetivos do cliente, respeitando seu tempo e sua individualidade no processo de crescimento e amadurecimento emocional.

Por fim, é importante destacar que este processo terapêutico também provocou reflexões significativas na terapeuta, especialmente por se tratar do atendimento de um homem que expressava valores inicialmente conflitantes com os seus próprios. A condução desse caso revelou-se um desafio no que tange ao manejo da escuta empática sem julgamentos, exigindo constante autorreflexão e supervisão clínica. Reconhecer essa dificuldade foi fundamental para aprofundar a compreensão da própria prática e reafirmar a importância do posicionamento ético e da autenticidade no encontro terapêutico. A experiência ressalta a relevância de o terapeuta estar atento às suas próprias reações internas, pois elas compõem a dinâmica relacional e influenciam diretamente no desenvolvimento da aliança terapêutica.

REFERÊNCIAS

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